Chegou e foi logo atirando as chuteiras ao chão. Lavou as mãos e pegou uma garrafa na geladeira. Era de um litro, não sobrou uma gota d’água. Era sempre assim quando chegava do “raxa”: roupas suadas espalhadas, chuteiras cheias de areia sujando a casa, secando a garrafa d’água e não enchendo depois, parecia não ter mais jeito. Estranhou a casa silenciosa, onde ela estava, por qual razão não teria vindo reclamar da bagunça ainda? As janelas e cortinas fechadas, um clima meio sombrio. Teria ele esquecido o aniversário dela? Não, ainda estava longe. Qual seria ao motivo, teria ela saído de casa sem ter avisado?
Foi vasculhando a casa, grande, herança dos avós, cheia de móveis de madeira, televisões e rádios velhos. As fotografias espalhadas por todos os lugares em reluzentes molduras mostravam rostos sorridentes. Quadros e vasos a transpirar cultura. Um tapete muito antigo, do tempo que o avô insistia em soltar pião dentro de casa e era repreendido pela mãe. Uma casa de objetos velhos, mas cheia de vida, pulsando boas memórias por todos os lugares.
Encontrou-a na área antes do quintal, daqueles repletos de coqueiros, goiabeiras, mangueiras. Escutva a quinta sinfonia de Beethoven. Estava sentada na velha cadeira de balanço, tão antiga, mas ainda assim tão confortável. Ela estava toda de preto, não sabia se de propósito ou não. Tentou fazer uma gracinha dizendo: “Já é halloween?”. Mas ela nem esboçou sorriso algum. O clima estava tenso, embora fosse um dia lindo, com um forte sol e os pássaros a voarem despreocupados (que inveja!).
- Precisamos conversar.
- Tudo bem por mim.
-Você tem alguma coisa pra me contar?
- Conta os gols que eu fiz hoje?
- ...
- Desculpa, não vou mais comentar, embora um tenha sido lindo...
- Está tudo bem com você?
- Comigo tá ótimo, acho que ficaria melhor depois de um bom banho e de um almoço caprichado...
- Não tem nada pra me contar?
- Acho que não.
- Tem certeza disso?
- Acho que sim.
- Você não está escondendo nada de mim, ou está?
- Por qual razão está dizendo essas coisas?
- Você está bem diferente nesses últimos meses...
- É porque eu fiquei mais magro, tava doente, cê lembra, minhas roupas tão mais folgadas, mas com tua comida maravilhosa já eu volto pra forma de antes, não que eu fosse muito forte mas...
- Não é só por isso...
- E por que mais seria?
- Isso eu espero que você me conte...
- Tudo bem, você venceu...
- Você anda bebendo escondido agora?
- Não é nada disso, nunca fui muito de beber, ainda mais escondido, sem beber eu já sou meio doido imagine bebendo...
- Ta fumando?
- Deus me livre, apressar a morte eu não quero mesmo...
- Tá envolvido com tóxico?
- Mas nem! De droga basta o almoço lá da empresa, que miseráveis...
- Meu Deus, com tóxico não, por favor, tanto que eu te aviso...
- Calma, nem tem nada de tóxico, meu corpo, meu templo. Saúde acima de tudo.
- Já sei, eu já sabia, não tinha como errar...
- Por que fez essa cara?
- É mulher não é?
- ...
- Era só ter me contado...
- Mas eu ia contar, era só...
- Esses meses todos? Você sabe que não gosto de ser a última a saber das coisas...
- Desculpa, prometo não fazer mais isso...
- Você tinha dito isso da última vez...
- Mas na vez antes dessa eu havia contado e tu tinha feito um escândalo, fiquei chateado...
- Eu mudei, aprendi muito esses anos todos e sei o que deve ser feito agora. Você está feliz com ela?
- Muito, muito mesmo. A gente não controla os sentimentos não é mesmo? Meu coração a escolheu e não posso fazer nada...
- Entendo, então só posso desejar felicidades. Nós estamos nessa vida é para sermos felizes mesmo. Eu quero mais é a tua felicidade. Quero te ver bem. Traga-a pra cá para eu conhecê-la, prometo controlar meus ciúmes.
- Ah, mãe, você não existe mesmo...
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