Traduzindo

quarta-feira, outubro 31, 2012

Crônica da coragem

Aquela "boquinha de me beija" ainda vai acabar comigo, pensou Paulo, esperando a vez no oftalmologista. A moça, dona de tal boca, estava sentada em frente a ele, também esperando a vez de ser atendida. Usava um Ray Ban moderninho, blusinha social e uma calça preta. Era bonita, branquinha, daquelas que por qualquer solzinho já estão rosadas ou avermelhadas. E tinha uma boca tão vermelha e carnuda... Como se ficasse fazendo um “bico” o tempo inteiro.

Paulo se sentia desafiado por aquela boca. Tentava não ficar olhando o tempo todo e detestava não saber para onde a jovem olhava. Quando um lugar ficou vago ao lado dela, hesitou por um momento. Diante de inúmeros pensamentos dizendo para não ir, para deixar a moça em paz e que não iria dar certo, resolveu mesmo esperar mais um pouco.

Sentado, começou a pensar em um jeito de se aproximar. Pensou em começar com a cantada mais clássica de todas: “Oi”? No entanto, ficou com medo de parecer muito atirado. Falar do tempo não dava, dentro do consultório não podiam ver o céu. "Você não é Fulaninha?" É umas das mais velhas e constrangedoras. Se dissesse "vem sempre aqui?" ela poderia rir dele e da pergunta, achando-o um lesado.

Por um momento, pensou em deixar rolar. Se fosse para acontecer, aconteceria. Coisas da vida, né? Destino. Talvez, quando ele fosse se sentar ao lado dela, ela puxasse conversa com ele, afinal, não era tão desprovido de beleza e até que estava arrumado. Era não esperar por nada e deixar o inesperado fazer a parte dele.

Até começou a pensar no propósito daquilo tudo, dessa insegurança. Talvez ela nem fosse nada de mais. Podia até ser uma pessoa má. Poderia até ser uma pessoa de caráter duvidoso e aquela boquinha seria a única coisa boa nela. Não duvidava nada tivesse ela sofrido muito em vidas passadas e Deus tivesse dado aquela tentação em forma de lábios como recompensa por uma vida dura. Talvez fosse boa pessoa e tivesse sempre de resistir ao pecado por conta da boca tentadora.

Mas ele resolveu agir, o inesperado. Ela foi chamada e, depois de uns quinze minutos, estava pronta para ir embora. Paulo não soube o que fazer. Tremeu e suou frio. O instinto romântico lhe disse para ir lá, se apresentar e dizer: “Moça, com licença, sei que somos desconhecidos e peço desculpas se a ofendo, mas não poderia deixá-la ir embora sem antes elogiar a tua beleza. Já vi, admirei e conheci muitas mulheres e em nenhuma delas vi uma beleza e uma boca como a tua. Pode me dar uma chance de te conhecer?”.

Mas não foi bem assim. Até se levantou usando toda a coragem do mundo. Foi em direção à porta, parou em frente à moça e se esforçou ao máximo para não gaguejar enquanto fazia a mais inesperada das perguntas: “Moça, sabe dizer se ele ainda pede pra dilatar a pupila antes?”.
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terça-feira, outubro 09, 2012

Felicidade

Esses dias, mesmo com uma quantidade absurda e totalmente desnecessária de propaganda política, um outdoor conseguiu chamar minha atenção. Nele, um sujeito de meia idade, de cabelos pretos e um pouco acinzentados, sorria. Um sorriso largo. E mais: de braços abertos, convidava-nos para comprar um livro de sua autoria: "Agarrando a felicidade". Convidava de um jeito acolhedor, como quem só quer dar um abraço afetivo. Tinha uma mágica no jeito vender.

Não tenho nada contra os livros de autoajuda, confesso. Sem preconceitos mesmo. Também não acho que seja uma forma menor de literatura. Nada disso. Só prefiro ler outros tipos de textos. Romances, crônicas, literatura fantástica e alguns poemas de vez em quando me fazem bem mais feliz.

Na verdade, acho que me sentiria bem infeliz lendo um desses livros sobre felicidade. Porque, assim, só de saber da existência de livros com títulos como "Encontrando a felicidade"; "Na trilha da felicidade", "Felicidade para todos", entre outros, fico a pensar o seguinte: "Bem, se alguém se preocupou em escrever receitas e mapas sobre esse sonho coletivo, deve ser para mostrar a dificuldade de se encontrar a felicidade por aí, numa esquina qualquer ou esperando por mim quando eu chegar a minha humilde residência. Então, lerei um deles e descobrirei um monte de fórmulas para ser feliz que eu não fiz e, logo, não poderia ser feliz".

Hoje em dia, vende-se felicidade como se ela fosse uma refeição, com receitas de chefs de toda parte mundo. E não deveria ser assim. Se fosse para ser vendida, deveria ser em farmácias de manipulação, com uma receita bem diferente para cada pessoa. Enquanto para alguns a felicidade é uma mansão na praia, com som alto e muita gente dançando, para outros, ela se traduz em uma casinha no meio do nada, como no friozinho do alto da serra, com uma garrafa de vinho, um amor enrolado no pescoço e um vira-lata pra espantar o silêncio de vez em quando.

Depois de bons anos de pesquisa, com a minha vida, com a dos outros, com livros, música e filmes, descobri que a felicidade está nas coisas mais simples da vida. Ela é como um Sonho de Valsa depois do almoço, uma brisa refrescante durante um dia de sol forte ou um abraço bem apertado em quem a gente gosta. Ela pode ser até uma crônica bem gostosa, que termina de repente, deixando um sorriso besta no coração da gente.
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