Traduzindo

quarta-feira, janeiro 09, 2013

O picolezeiro


A profissão do título é um neologismo. Até acho justo criar uma nomenclatura e valorizar uma profissão tão importante. Em nossa tórrida loura desposada do sol eles são fundamentais. Além do picolé (do passarinho ao famoso “de água da chuva”), o marujinho: uma iguaria dos mais diversos sabores para combater o calor, pois é preciso estar sempre bem hidratado.

Então, depois do momento gramático-social-saudável, vamos à história. Atualmente, estou com uma mania engordante e nada econômica após o almoço: comer um picolé. Sempre comprava na farmácia em frente ao trabalho até o dia no qual ele apareceu. O picolezeiro. Um senhor baixinho, com seus sessenta e tantos anos, sempre a usar um boné para aplacar a quentura. A pela é bem bronzeada, castigada pelo sol.

Tenho companhias variadas durante o almoço e uma companhia certa após ele: o picolezeiro. Conversamos sempre sentados debaixo de dois palmos de sombra na frente da empresa. Fiquei imaginando a história de vida daquele senhor ainda cheio de energia, mesmo dizendo já estar bem cansado de tantas andanças.

Antes mesmo dele começar a contar, já tinha visto tudo: com certeza, era um ex-militar, cheio de mulheres e vazio de amor verdadeiro. Deve ter servido em algum lugar distante, como florestas ou serras e deve ter passado fome e sede para mostrar ser merecedor da farda. Após as desilusões amorosas, se entregou à bebida e hoje o picolé e o marujinho são os companheiros na luta pela sobrevivência.

- Meu filho, nasci aqui pertinho, num vilarejo que nem nome tinha na época. Trabalhei na roça e depois eu vim aqui pra Fortaleza. Passei muito tempo trabalhando em construção, muito tempo mesmo. Levantei prédio e casa em tudo quanto é bairro por aqui. Se duvidar, não sei onde cê mora, mas eu devo ter construído também.

Parou um pouco, tirou o boné para limpar o suor e disse um “volto já” para atender outro cliente. Quando voltou, o assunto era outro

- Já conheci muita gente nesse mundo, meu filho. Trabalhei muito tempo num shopping aqui, aquele lá dos mangues, da área verde, do dono do Ceará. É, aquele mesmo. Tinha muita gente rica ali e também muita gente besta. E eu não tenho nada contra os ricos não, até tenho uns conhecidos que são. Respeito, mas é porque tem uns tão bestas! Se duvidar, tão pensando que vão levar o dinheiro pro céu.

- Olhe, e era bom lá. Saí de besta. De besta não, pela monotonia. Mesmo eles pagando direitinho eu tive vontade de sair. Com o dinheirinho, levantei uma casinha melhor pra mim. Trabalhei também como segurança, mas também era muito chato. Reclamei tanto e virei vendedor de picolé. Tá com uns nove anos já. Andava daqui lá pro shopping. É chão, né? Eu sei. Andei demais debaixo desse sol desgraçado e tomei muito banho de chuva também. Meus meninos não querem que eu saia mais não. Eu tô muito cansado, mas vou ficar em casa fazendo nada? Só aperreando a mulher? Eu mesmo não.

Então, ficou olhando pro nada, olhando o tempo passar. Quando levantei para voltar ao trabalho, ele me perguntou a profissão e eu disse “jornalista”.

- Jornalista? Aquele pessoal que só gosta de fofoca? De falar da vida dos outros? Meu filho, deixe disso. Cada um vive a sua vida.
- Mas eu não sou do pessoal da fofoca não. Sou do pessoal da ciência.

- Ah... Se você tá dizendo...
- Irmão, vou escrever sobre você no meu blog. O senhor deixa?

- No seu quê? Bógui? Que conversa feia é essa?
- É tipo um site, é na internet.

- Ah, tá. Vai contar a minha história?
- Vou sim, gostei dela.

- E vai contar que eu vendo picolé?
- Vou sim, com certeza

- E muita gente vai ler?
- Pode ser, talvez. Não posso garantir.

- Pois, meu filho, aproveite e me ajude. Mande um feliz ano novo pra todo mundo e diga que eu tô por aqui sempre no horário do almoço, tá certo?

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